"Uma revolução
não é o mesmo que convidar alguém para jantar, escrever um ensaio, ou pintar um
quadro... Uma revolução é uma insurreição, um ato de violência pelo qual uma
classe derruba a outra"(Mao Tse Tung)
Artigo no Fique
Alerta
Por Roberto Campos
Dizia-me um amigo
argentino, nos anos 60, que seu país, rico antes da Segunda Guerra, optara no
pós-guerra pelo subdesenvolvimento. E não se livraria
dessa neurose enquanto não se livrasse de três complexos: o complexo da madona,
o fascínio das ossadas e a hipóstase da personalidade. Duas madonas se tinham
convertido em líderes políticos - Evita e Isabelita. As ossadas de Evita foram
alternativamente sequestradas e adoradas, exercendo absurdo magnetismo sobre a
população. E a identidade nacional era prejudicada pelo fato de o argentino ser
um italiano que fala espanhol e gostaria de ser inglês...
A Argentina parece
ter hoje superado esses complexos. Agora, é o Brasil que importa um desses complexos.
Os estrangeiros que
abrem nossos jornais não podem deixar de se impressionar com o espaço ocupado pelas
ossadas: as ossadas sexuais de PC Farias, as ossadas ideológicas dos
guerrilheiros do Araguaia e as perfurações do esqueleto do capitão Lamarca! Em
vez de importarmos da Argentina a tecnologia de laticínios, estamos importando
peritos em "arqueologia moderna", para cavoucar as ossadas do
cemitério da Xambioá. Há ainda quem queira exumar cadáveres e ressuscitar
frangalhos do desastre automobilístico que matou Juscelino, à procura de um
assassino secreto. Em suma, estamos caminhando com olhos fixos no retrovisor. E
o retrovisor exibe cemitérios.
Na olimpíada
mundial de violência, os militares brasileiros da revolução de 1964 não
passariam na mais rudimentar das eliminatórias. Perderiam feio para os campeões
socialistas, como Lênin, Stálin e Mao Tsé-Tung. Seriam insignificantes mesmo
face a atletas menores, como Fidel Castro, Pol Pot, do Camboja, ou Mengistu, da
Etiópia.
Os 136 mortos ou
desaparecidos em poder do Estado, ao longo das duas décadas de militarismo
brasileiro, pareceriam inexpressivos a Fidel, que só na primeira noite
pós-revolucionária fuzilou 50 pessoas num estádio. Nas semanas seguintes, na
Fortaleza La Cabaña, em Havana, despachou mais 700 (dos quais 400 membros do
anterior governo). E ao longo de seus 37 anos de ditadura, estima-se ter fuzilado
17 mil pessoas. Isso em termos da população brasileira equivaleria a 150 mil
vítimas. Tiveram de fugir da ilha, perecendo muitos afogados no Caribe, 10% da
população, o que, nas dimensões brasileiras, seria equivalente à população da
Grande São Paulo.
Definitivamente, na
ginástica do extermínio, os militares brasileiros se revelaram singularmente
incompetentes. Também em matéria de tortura nossa tecnologia é primitiva, se
comparada aos experimentos fidelistas no Combinado del Este, na Fortaleza La
Cabaña e nos campos de Aguica e Holguín. Em La Cabaña havia uma forma de
tortura que escapou à imaginação dos alcaguetes da ditadura Vargas ou dos
"gorilas" do período militar: prisioneiros políticos no andar de
baixo recebiam a descarga das latrinas das celas do andar superior.
O debate na mídia
sobre os guerrilheiros do Araguaia precisa ser devidamente
"contextualizado" (como dizem nossos sociólogos de esquerda).
Sobretudo em benefício dos jovens que não viveram aquela época conturbada. A
década dos 60 e o começo dos 70 foram marcados mundialmente por duas
características: uma guinada mundial para o autoritarismo e o apogeu da Guerra
Fria. Basta notar que um terço das democracias que funcionavam em 1956 foram
suplantadas por regimes autoritários nos principais países da América Latina,
estendendo-se o fenômeno à Grécia, Coréia do Sul,
Taiwan, Cingapura e à própria Índia, onde Indira Ghandi criou um período de
exceção.
Na América Latina,
alastrou-se o que o sociólogo O'Donnell chamou de "autoritarismo
burocrático". O refluxo da onda democrática só viria nos anos 80, que
assistiria também à implosão das ditaduras socialistas.
Uma segunda
característica daqueles anos foi a agudização do conflito ideológico. Na era
Kennedy (1961-63), que eu vivenciei como embaixador em Washington, houve nada
menos que duas ameaças de conflito nuclear.
É nesse contexto
que deve ser analisado o episódio dos guerrilheiros do Araguaia e da morte de
Lamarca. Não se tratavam de escoteiros, fazendo piqueniques na selva com
canivetes suíços. Eram ideólogos enraivecidos, cuja doutrina era o
"foquismo" de Che Guevara: criar focos de insurreição, visando a implantar
um regime radical de esquerda. Felizmente fracassaram, e isso nos preservou do
enorme potencial de violência acima descrito.
Durante nossos
"anos de chumbo", não só os guerrilheiros sofreram; 104 militares,
policiais e civis, obedecendo a ordens de combate ou executados por
terroristas, perderam a vida. Sobre esses, há uma conspiração de silêncio e,
obviamente, nenhuma proposta de indenização. Qualquer balanço objetivo do
decênio 1965-75 revelará que no Brasil houve repressão e desenvolvimento econômico (foi a era do
"milagre brasileiro"), enquanto nos socialismos no terceiro mundo e
no leste europeu houve repressão e estagnação.
É também coisa de
politólogos românticos pensar que a revolução de 1964 nada fez senão
interromper um processo normal de sucessão democrática. A opção, na época, não
era entre duas formas de democracia: a social e a liberal. Era entre dois
autoritarismos: o de esquerda, ideológico e raivoso, e o de direita, encabulado
e biodegradável.
Hoje se sabe, à luz
da abertura de arquivos, que a CIA e o KGB (que em tudo discordam) tinham
surpreendente concordância na análise do fenômeno brasileiro: o
Brasil experimentaria uma interrupção no processo democrático de substituição
de lideranças. Reproduzindo o paradigma varguista, Jango Goulart, pressionado
por Brizola, queria também seu "Estado Novo". Apenas com sinais
trocados: uma república sindicalista.
Tenente Alberto Mendes Junior, morto pela quadrilha do desertor do Exército Carlos Lamarca, quando já estava preso e rendido.
Tenente Alberto Mendes Junior, morto pela quadrilha do desertor do Exército Carlos Lamarca, quando já estava preso e rendido.
As embaixadas
estrangeiras em Washington, com as quais eu mantinha relações como embaixador
brasileiro, admitiam, nos informes aos respectivos governos, três cenários para
a conjuntura brasileira: autoritarismo de esquerda, prosseguimento da anarquia
peleguista com subsequente radicalização, ou guerra civil de motivação
ideológica. Ninguém apostava num desenlace democrático...
Parece-me também
surrealista a atual romantização pela mídia (com repercussões no Judiciário) da
figura do capitão Lamarca, que as Forças Armadas consideram um desertor e
terrorista. Ele faz muito melhor o perfil de executor do que de executado.
Versátil nos instrumentos, ele matou a coronhadas o tenente Paulo Alberto,
aprisionado no vale da Ribeira, fuzilou o capitão americano Charles Chandler,
matou com uma bomba o soldado Mário Kozell Filho, abateu com um tiro na nuca o
guarda-civil Mário Orlando Pinto, com um tiro nas costas o segurança Delmo de
Carvalho Araujo e procedeu ao "justiçamento" de Márcio Leite Toledo,
militante do Partido Comunista que resolvera arrepender-se.
Soldado Mário Kozel Filho
Soldado Mário Kozel Filho
Aliás, foram dez os
"justiçados" pelos seus próprios companheiros de esquerda. Se o
executor acabou executado nos sertões da Bahia, é matéria controvertida. Os
laudos periciais revelam vários ferimentos, mas nenhum deles oriundo de
técnicas eficientes de execução que o próprio Lamarca usara no passado: tiro na
nuca (metodologia chinesa), tiro na cabeça (opção stalinista) ou fuzilamento no
coração (método cubano). As Forças Armadas têm razão em considerar uma
profanação incluir-se Lamarca na galeria de heróis.
As décadas de 60 e
70, no auge da Guerra Fria, foram épocas de imensa brutalidade. Merecem ser
esquecidas, e esse foi o objeto da Lei de Anistia, que permitiu nossa transição
civilizada do autoritarismo para a democracia. Deixemos em paz as ossadas. Nada
tenho contra a monetização da saudade, representada pela indenização às famílias
das vítimas. Essa indenização é economicamente factível no nosso caso. Os
democratas cubanos, quando cair a ditadura de Fidel Castro, é que enfrentariam
um problema insolúvel se quisessem criar uma "comissão especial" para
arbitrar indenizações aos desaparecidos. Isso consumiria uma boa parte do
minguado PIB cubano!
Nosso problema é
saber se a monetização da saudade deve ser unilateral, beneficiando apenas as
famílias dos que se opunham à revolução de 1964. Há saudades, famílias e
ossadas de ambos os lados.
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Roberto Campos,
economista e diplomata já falecido, foi, entre outros cargos, embaixador nos
Estados Unidos, deputado federal, senador e ministro do Planejamento. É autor
de diversas obras sobre política e economia, destacando-se suas memórias com o
título "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994). Texto publicado nos jornais O Globo e Folha de São Paulo , em 04.08.1996.
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Não tenho qualquer dúvida em afirmar que Roberto Campos é o meu maior ícone político e ideológico. Também sou Bob Fields, guardadas as devidas proporções.
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Remetido pelo amigo Anatoli, de Curitiba.
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