II - Santa Catarina e seu ambiente alexandrino.
Chama a atenção o fato de que as características da Santa, apresentada como uma jovem culta, vivendo numa cidade culta, conferem com a realidade de Alexandria, no delta do rio Nilo, uma das capitais mais importantes do Império Romano na época, cidade famosa pela sua biblioteca e suas instituições culturais, inclusive por sua escola de filosofia e teologia cristã, o Didaskaleion, celebrizado por luminares com Clemente Alexandrino, Orígenes, Dionísio, Atanásio.
É de Alexandria também a célebre filósofa pagã neoplatônica, Hipátia, filha do matemático Theon e discípula de Plutarco em Atenas, a qual, um século depois de Catarina, teve um fim trágico, no ano de 415. Ao tomar partido pelo prefeito Orestes contra o patriarca Cirilo, foi trucidada por fanáticos cristãos (!).
O martírio de Santa Catarina, situado no início do século IV, coincide com a grande perseguição de Diocleciano e seus sucessores, perseguição que vitimou tantos mártires em Roma e nas várias cidades do Império, inclusive em Alexandria. Nesta cidade, foi a época do governo tirânico de Maximino, cuja crueldade e devassidão são descritas com fortes tintas pelo historiador cristão Eusébio, contemporâneo dos fatos. No livro VIII de sua obra "História Eclesiástica", ele assim escreve sobre as mulheres cristãs martirizadas nessa época: "Quanto às mulheres, não eram menos valentes que os homens na fidelidade à Palavra divina. Umas, submetidas às mesmas torturas, alcançaram prêmios iguais de virtude; outras, arrastadas à desonra, preferiam antes entregar suas vidas que submeter seus corpos à infâmia". Isto, no parágrafo 14 do capítulo 14 desse livro. Logo a seguir, no parágrafo 15, infelizmente sem nomeá-la, mas com traços que em parte coincidem com os que a tradição atribui a Catarina, escreve: "Uma delas, das que foram molestadas por Maximino, uma cristã muito distinta e muito ilustre de Alexandria, triunfou da alma pervertida e licenciosa do tirano por sua corajosa firmeza; era além disso, famosa por sua fortuna, seu nascimento, sua educação, e colocava sua castidade acima de tudo. Ele insistiu muito com ela, a qual no entanto estava pronta a morrer antes que entregar-se a ele. De sua parte, o tirano não se sentiu capaz de mandar matá-la, pois sua paixão era mais forte que o seu despeito. Condenou-a, então, ao exílio, e confiscou-lhe toda a fortuna".
Monastério Santa Catarina no Sinai.
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Ainda quanto às mártires de Alexandria, o mesmo historiador Eusébio se refere a outras, que foram vítimas de diferentes perseguições. Assim, por exemplo, a mártir Heraís, ainda catecúmena, executada na fogueira por volta do ano 235; na mesma época, a jovem Potamiena, torturada e provada de vários modos, enfim executada com pez fervente derramado sobre o seu corpo membro por membro, dos pés à cabeça... (cf livro VI,5,1-4); na perseguição de Décio, em 250, a mártir Quinta, arrastada pela cidade, espancada e apedrejada (livro VI, 41,4); a jovem Amonariana, torturada ferozmente; a anciã Mercúria e Denise, mãe de muitos filhos, executadas pela espada (livro VI, 41,18)... Isso quer dizer que, mesmo se a lenda embelezou e multiplicou os detalhes do martírio de Santa Catarina, o fato de mulheres, adultas ou jovens, terem sido martirizadas de vários modos em Alexandria, ao longo do século III e no início do século IV, é inegável.
Outra característica interessante da época de Santa Catarina, em Alexandria, é o início do movimento monástico, um movimento que já tivera seus predecessores nas comunidades judaicas dos "terapeutas", homens e mulheres que se retiravam para o deserto, já na época de Fílon, na primeira metade do século I. Depois, desde fins do século III, são monges cristãos que, como Santo Antão e Pacômio, buscam a solidão, primeiro para fugirem à perseguição, depois, para viverem o ideal de renúncia do ascetismo. A propósito, convém lembrar que o corpo da mártir vai encontrar repouso entre os monges do Sinai, para onde foi transportado, segundo a lenda, pelos anjos.
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Padre Ney Brasil Pereira, autor deste estudo (do seu livro "Santa Catarina de Alexandria", páginas 11, 12 e 13).
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